Entenda como o governo Bolsonaro atuou para pôr fim à política de valorização do salário mínimo

 

Em nota técnica na 23ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), tratei do fim da política de valorização do salário mínimo no governo Bolsonaro. A íntegra da nota está disponível em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs. Aqui, uma síntese da nota.

 
O salário mínimo (SM) foi instituído em maio de 1940, durante a ditadura do Estado Novo. Hoje, 82 anos depois, o seu poder de compra real é apenas 13% superior ao de quando foi criado. Isso é resultado de uma trajetória histórica marcada por descumprimentos de sua legislação, que visaram, sobretudo, rebaixar o preço mínimo da força de trabalho.
 
 
O SM nunca foi o patamar mínimo (o menor) efetivamente praticado no mercado de trabalho nacional, cujas altas taxas de informalidade cumpre papel essencial para acumulação capitalista. O SM tampouco operou, tal como prevê sua legislação, como o mínimo necessário para garantia da subsistência do trabalhador/a e de sua família.
 
A Constituição de 1988 define o SM como aquele fixado em lei, nacionalmente unificado, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo e capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (Constituição Federativa do Brasil, art. 7″ – IV).
 
 
Para isso, segundo o Dieese, em setembro de 2022, o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ 6.306,97, isto é, 5,20 vezes o SM vigente (R$ 1.212,00). Ainda segundo o Dieese, um SM comprava apenas 1,61 cestas básicas na capital paulista em set./22.
 
A Política de Valorização do Salário Mínimo (PVSM), implementada em 2007, durante a presidência de Lula (PT), foi uma inflexão na trajetória histórica do SM. Isto porque garantiu previsibilidade aos trabalhadores e empregadores quanto às correções anuais do SM, preservou seu poder de compra e acelerou o processo de recuperação e valorização do piso nacional. Ademais, a PVSM resultou em uma valorização real acima de 40,0% do piso nacional, entre 2007 e 2016, enquanto sua legislação foi respeitada.
 
A despeito de sua importância no combate à pobreza e a desigualdade nos anos 2000, a PVSM foi descumprida no governo de Michel Temer (MDB) e, posteriormente, extinta no governo de Jair Bolsonaro (PL), em 2019. Ambos governos optaram por ir na contramão das práticas globais de regulação de patamares mínimos de remuneração recomendadas pela OIT em seu Relatório Global sobre Salários (2020).
 
O desmonte da PVSM
Até a implementação da PVSM e a, consequente, fixação de critérios de correção do SM no longo prazo, o preço do piso nacional era corrigido de forma discricionária. Entre 1988 e 2007, a definição do percentual de reajuste do SM esteve relacionada, principalmente, a elementos político-conjunturais e ao projeto político da coalizão governante. Antes da PVSM, o Poder Executivo federal e sua capacidade de negociação com o Poder Legislativo eram os fatores chaves na determinação da trajetória do poder de compra do SM. Não havia qualquer previsão legal de espaços institucionais ou instrumentos de participação da sociedade civil na produção dos parâmetros de correção do piso nacional.
 
A PVSM foi uma política pública exemplar na medida em que foi produto e produtora de um espaço de diálogo social quadripartite em âmbito nacional e resultou da ação unitária de sete centrais sindicais, que entre 2003 e 2007 transformaram uma pauta histórica dos trabalhadores em vetor da ação sindical. Esses fatores garantiram forte legitimidade social e institucional a PVSM.
 
Contudo, as mudanças que o contexto político-institucional brasileiro experimentou a partir de 2014 e que culminaram no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, alterou a natureza do regime democrático brasileiro e resultou em um acelerado processo de desmonte de diversas políticas públicas, entre elas a PVSM.
 
O governo de Michel Temer (MDB), ao descumprir a Lei 13.152/2015, que regulava a PVSM, manifestou o primeiro sinal de que a PVSM estava sob ataque e não era compatível com o projeto golpista “Ponte para o Futuro”.
 
Durante os 28 meses do governo Temer, o SM foi corrigido duas vezes, em jan./2017 e jan./2018. O valor do SM passou de R$ 880,00, em dez./2016, para R$ 954,00, em dez./2018. Isso significou um rebaixamento de 0,35% no poder de compra do SM. Para cumprir os parâmetros da PVSM, Temer precisava apenas repor a variação da inflação, visto que o PIB havia registrado variações negativas em 2015 e 2016, fator que o desobrigava a aplicar qualquer reajuste real no piso nacional. No entanto, Temer e sua coalizão decidiram descumprir a lei e restringir o poder de compra do SM.
 
O fim da PVSM ocorreu, de fato, durante o primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro (PL). Em 2019, havia a previsão legal de um processo de revisão e possível revalidação da PVSM no âmbito do legislativo federal, apesar disso sem qualquer diálogo social Bolsonaro pôs fim a PVSM. Desde então, o processo de correção do SM não possui um fórum institucionalizado e o debate público sobre o poder de compra ou processo de correção do SM tem sido diminuto.
 
As correções do salário mínimo
O governo Bolsonaro realizou quatro correções no preço do SM ao longo de seu mandato (2019-2022). Nesse período, o preço do piso nacional passou de R$ 954,00, em dez./18, para os atuais R$ 1.212,00, o que significou valorização real de apenas 1,2% do SM, quando comparado a variação da inflação medida pelo INPC-IBGE.
 
A primeira dessas correções ocorreu em jan./19. Nessa oportunidade, Bolsonaro reajustou o SM em 4,61%. Este percentual recuperou as perdas inflacionárias de 2018 e garantiu aumento real de 1,14% no SM a partir daquele mês. No entanto, o que à primeira vista pareceu uma boa notícia para os trabalhadores/as, na verdade foi uma derrota. Isto porque, a despeito da reposição das perdas referente ao governo Temer (equivalentes a 0,35%), esse reajuste descumpria os parâmetros legais garantidos pela PVSM ainda vigente e que previa aumento real do poder de compra do SM de 1,32% à época, equivalente a variação do PIB nacional de dois anos antes (2017).
 
Em 2020, o governo Bolsonaro realizou nova correção, a qual, desta vez, garantiu a recomposição integral do INPC do ano anterior e um reajuste real de 0,22% no preço do SM, que passou de R$ 1.039,00 para R$ 1.045,00.
 
No ano seguinte, diante de um quadro de pandemia global, que apenas no Brasil já havia ceifado mais de 200 mil vidas; retração da atividade econômica; elevados indicadores de insegurança alimentar; e taxa de desocupação acima de 13,0%, o governo Bolsonaro decidiu rebaixar em 0,18% o poder de compra do SM, que passou de R$ 1.045,00 para R$ 1,100,00 em termos nominais.
 
 
Por fim, em jan./22, o atual governo realizou sua quarta e última correção no preço do SM, a qual repôs a variação da inflação do no ano anterior e garantiu um aumento real marginal de 0,02% ao poder de compra do SM. Com isso, o piso nacional alcançou seu atual valor nominal de R$ 1.212,00.
 
Em síntese, o governo de Jair Bolsonaro ficará marcado pela baixa valorização (ou quase estagnação) do salário mínimo, que acumulou aumento real de apenas 1,2% ao longo de quatro anos. Se considerados os períodos dos governos de Temer e Bolsonaro o resultado é ainda pior. Entre 2017 e 2022, o SM acumulou ganho real de apenas 0,64%, isto é, o preço mínimo legal da força de trabalho no Brasil foi praticamente congelado no pós-2016.
 
O fim silencioso da PVSM será o legado do governo autoritário de Bolsonaro aos cerca de 57 milhões de trabalhadores/as da ativa e pensionistas que em 2021, segundo Dieese, tinham no salário mínimo o principal parâmetro para sua remuneração.
 
Impedir a manutenção desse projeto de desmonte das políticas de proteção social e fragilização da democracia brasileira é impreterível.
 
Mahatma Ramos dos Santos é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do PPGSA-UFRJ e pesquisador do núcleo pesquisa Desenvolvimento, Trabalho e Ambiente (DTA-UFRJ) e do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep-FUP).

Fonte: sindsaudejau

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