Presidente da Anamatra esclarece o papel da Justiça do Trabalho na aplicação da nova Lei 13.467/17

Presidente da Anamatra esclarece o papel da Justiça do Trabalho na aplicação da nova Lei 13.467/17
Guilherme Guimarães Feliciano, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, aponta retrocessos e inconstitucionalidades na reforma trabalhista. Leia a íntegra da entrevista à revista Mundo Sindical
Mundo Sindical - Em análise geral, o Sr. acha que a reforma trabalhista vai dar certo? Ou pode ser considerada um retrocesso?
Guilherme Guimarães Feliciano – Em termos gerais – e a Anamatra tem se pronunciado desde a tramitação -, há mais retrocessos do que qualquer coisa. Não é ser maniqueísta e dizer que tudo ali é horroroso. Há alguns pontos interessantes, especialmente no processo, como a contagem de prazo de dias úteis, a questão da repartição do ônus da prova, ou seja, quem prova o quê, com certa flexibilidade para o juiz e com maior clareza na regra. Mesmo no caso do direito coletivo, há a previsão de que, se houver aquela negociação coletiva, que a Constituição autoriza, de redução de salário com redução de jornada, deverá necessariamente haver uma garantia de emprego prevista no acordo, na convenção coletiva. Mas são aspectos muito pontuais. No geral, o que me parece é que houve realmente supressão de direitos.
Há inúmeros exemplos, como as horas in itinere (de percurso), que simplesmente desaparecem, a prévia negociação com os sindicatos antes de dispensas coletivas, que a lei pretende afastar, as homologações das decisões nos sindicatos, que também desaparecem. Há um leque imenso de matérias de negociação, inclusive em prejuízo do que está na lei, alcançando matérias que a Constituição não autorizou que pudessem ser objeto de negociação coletiva, em termos piores que os legais. Há a questão da jornada que, aí também, a nossa ver, contraria a Constituição ao admitir o banco de horas por até seis meses, por acordo individual, ou a jornada 12 por 36 por acordo individual – item que a Medida Provisória 808 corrigiu, mas corrigiu em parte.
A previsão de que questões ligadas à jornada e intervalo não dizem respeito à saúde e à segurança dos trabalhadores é um retrocesso de 200 anos. O Direito do Trabalho nasce – isto se encontra em qualquer manual – no início do século 19, com o chamado “Peel`s Act”, ou Lei de Peel (Robert Peel, então primeiro-ministro da Inglaterra). Na verdade, era o “The Health and Morals of Apprentices Act, de 1802, ou seja, “Lei para a Saúde e a Moral dos Aprendizes”. O que essa Lei fazia basicamente era estabelecer uma idade mínima para o trabalho e limitar a jornada. Então, uma Lei que é praticamente o nascedouro do Direito do Trabalho, e cujo nome começava com “Health” (saúde), exatamente limitava a jornada. Aí vem o legislador brasileiro, 200 anos depois, dizer que jornada nada tem a ver com saúde, o que é um grande equívoco. Qualquer médico do trabalho sabe disso. Então, realmente, há muitos retrocessos na lei.

"Juízes não boicotam leis. Juízes interpretam leis"

Mundo Sindical - Parece haver tendência na mídia de considerar que a Justiça do Trabalho “perde” espaço com a reforma. Outros prevêem uma enxurrada de processos e que será valorizada. Como vê esses aparentes extremos?
Feliciano – A Justiça do Trabalho, por si, não perde nada. Na verdade, o que a lei faz, sobretudo, é de fato apostar nas medidas sociais. Não são medidas do trabalho, são na realidade dos trabalhadores. E os juízes do Trabalho – isso foi algo que a mídia insistentemente disse – não vão boicotar lei alguma, porque juízes não boicotam leis. Juízes interpretam leis. Agora, na nossa visão - e aí falo pela Anamatra -, essa lei tem muitas inconstitucionalidades. E o juiz do Trabalho, ao reconhecer essas inconstitucionalidades, não é que ele pode, ele deve declará-las e afastar para aquele caso concreto a aplicação da lei. Então, imaginar que isso é um ato de boicote, de resistência e de desobediência civil é de uma ignorância inepta. O juiz, quando ele toma posse, quando ele é investido na sua função jurisdicional, ele jura cumprir e fazer a Constituição e as leis. E o Brasil tem dois modelos de controle de constitucionalidade: o modelo concentrado, em que se reclama diretamente ao Supremo Tribunal Federal - e o que se decide alcança todo o país - e o modelo difuso, em que o próprio juiz de primeiro grau pode identificar uma inconstitucionalidade e aí, incidentalmente, afastar a aplicação do preceito. Isso somente vale para aquele caso, mas ele pode em tese fazer isso e reconhecer.
Na verdade, há até certo discurso intimidatório, que nós lamentamos muito. Dou um exemplo e aí é interessante dar nome aos bois. A Confederação Nacional dos Transportes começou a divulgar em uma cartilha que juízes do trabalho que, por acaso, “não apliquem a lei trabalhista”, a lei da reforma ou, como se reclamou, da modernização trabalhista, sejam levados ao Conselho Nacional de Justiça para responder disciplinarmente. Isso é um despautério. É de um autoritarismo que lembra os piores momentos de nossa história, ou seja, é uma confederação querendo na verdade amordaçar juízes. Eles não vão intimidar a Magistratura. Os juízes que identificarem inconstitucionalidades vão reconhecê-las. E no final a jurisprudência pacificará o que é e o que não é inconstitucional. Eu tenho a convicção de que há muitas coisas inconstitucionais. Mas veja como isto é absurdo. Então, a Confederação Nacional dos Transportes levará ao CNJ, para providências disciplinares, os juízes que não apliquem a lei da reforma. Então, talvez também uma Central sindical possa levar ao CNJ os juízes que decidem aplicá-la. Isso é um absurdo completo. Lamento muito que essa confederação tenha tido essa iniciativa. Foi um ato autoritário e essa iniciativa será levada aos tribunais e os juízes vão fazer o seu trabalho. Alguns não veem inconstitucionalidades. Muitos veem. Os que veem não só podem como devem apontá-las.

‘Função da Justiça não é gerar riqueza para sociedade’

Mundo Sindical - E as críticas de que a Justiça do Trabalho tem um custo muito elevado para os benefícios que gera?
Feliciano – É muito interessante falar disso. Até circulou a informação de que 98% das ações trabalhistas estariam no Brasil. Essa é uma mentira absurda. É de um engano rematado. Na verdade, o volume de processos trabalhistas no Brasil não alcança 15% do volume nacional. Na verdade, a maior parte dos processos no Brasil não está na Justiça do Trabalho, está nas Justiças dos Estados – as Justiças estaduais. E na Justiça da União, aí sim, o maior ramo é o da Justiça do Trabalho, porque a Justiça Federal é menor e a Justiça Militar, menor ainda. Agora, mesmo no Brasil, a maioria dos processos não é nossa, é da Justiça estadual. Em relação ao resto do mundo, se essa informação de 98% fosse verdadeira, pelos últimos números do “Justiça em Números” isso significaria que no resto do mundo existiram 600 mil ações trabalhistas. Esta é uma mentira imensa. Somente o Distrito de Nova York, nos Estados Unidos, tem um volume de ações anual muito maior que isso. Não sei de onde esse dado partiu, mas é um dado mentiroso.
Agora, há muitas ações na Justiça do Trabalho? Há. E isso se deve a quê? A uma série de fatores. Há aventuras judiciárias? Há. São a maioria? Não. Basta ver os dados do “Justiça em Números 2017”, referindo-se aos dados de 2016. A maior parte das ações na Justiça do Trabalho, as que são decididas no seu mérito, é julgada parcialmente procedente, ou seja, o trabalhador tinha alguma razão. O total de improcedências totais é inferior a 5%. Então, ao que parece, não há tantas aventuras jurídicas assim.
Por outro lado, sabemos disso, em certos segmentos há uma certa cultura de sonegação de direitos. O trabalhador ganha em primeiro grau, ganha em segundo grau e a empresa leva isso até Brasília, muitas vezes com teses que já estão pacificadas. Depois, quando transita em julgado, a empresa ainda resiste e aí, no último momento, quando está prestes a ser executada, ela faz uma proposta de acordo. Isso é uma cultura de protelação de um crédito que já está suficientemente reconhecido. Isso também abarrota os escaninhos da Justiça do Trabalho. Então, há que se ter cuidado com esses números e com a referência de que a Justiça do Trabalho é muito cara, de que distribui ao jurisdicionado basicamente o mesmo valor que ela custa ao Orçamento. Se formos fazer esse raciocínio, o que dizer da Justiça Criminal? O que ela distribui em termos de riqueza à sociedade? Ou a Justiça Eleitoral? Há aqui um vezo de incompreensão imensa.
A função da Justiça não é gerar riqueza para a sociedade. A função da Justiça, incluindo a Justiça do Trabalho, é pacificar os conflitos entre capital e trabalho. Então, o seu valor não pode ser medido pelo quanto ela distribui em termos de riqueza. Quando o trabalhador não tem razão, a Justiça do Trabalho não concede direitos. Quando ele tem, ela concede. Então, temos de ter muito cuidado com essas comparações. Porque, se for por aí, pelo quanto de riqueza aquele ramo, aquela instituição devolve à sociedade, nós deveríamos eliminar antes a Justiça Criminal, a Justiça Eleitoral, a Justiça Militar. Teríamos de eliminar, talvez, as Polícias, porque também não geram riqueza. E por aí vai.

De onde vem a independência técnica dos juízes?

Mundo Sindical – Na sua função de equacionar os conflitos entre capital e trabalho, até que ponto, na prática, vai a independência técnica dos juízes?
Feliciano – Esta é uma boa pergunta. Qual é o dever dos juízes ao decidir? Já disse que o controle difuso da constitucionalidade, examinar se aquela lei está ou não de acordo com a Constituição, não é somente uma faculdade, é um dever do juiz. Ele deve fazer. Se ele estiver convencido de que aquele preceito de lei viola a Constituição, ele deve afastá-lo. Agora, quais são as condições para que ele faça isso e para que em geral interprete? O maior dever constitucional nesse particular - está no artigo 93 da Constituição - é o dever de fundamentar.
O juiz não é o déspota que a história diz. Ele não pode dizer: eu acho que é assim porque é, eu acho que é assim porque eu quero. Ele tem que fundamentar, ele tem de demonstrar quais os fundamentos que estão no sistema jurídico, nas leis, nos tratados internacionais, na própria Constituição, nas normas administrativas aplicáveis - enfim, quais são os fundamentos jurídicos que baseiam aquela sua decisão. Ele precisa ter essa transparência na argumentação. Uma vez que faça isso, ele está dentro dos limites da sua independência técnica.
E ele tem que se fundamentar no Direito. Aqui também é outro limite muito claro. Ele não pode dizer que decide assim ou assado porque isso está na Bíblia. A Bíblia não é base do sistema jurídico. No nosso modelo, o sistema jurídico, que é um modelo de Direito escrito, é composto pelos elementos de que falei, por essas espécies legislativas – os atos administrativos regulamentares, as leis, os tratados e convenções internacionais, os regulamentos de empresa e a própria Constituição. Ele tem que se basear nisso, e não em qualquer outro código de conduta que não seja jurídico, que seja religioso, que seja moral. A sua perspectiva é técnico-jurídica. Portanto, desde que o juiz decida fundamentadamente, esclarecendo suas razões e dizendo quais razões são, com base no Direito, no sistema jurídico, e não em outros códigos de conduta, ele está dentro de sua independência técnica.

"Excrescência” derruba justiça gratuita integral

Mundo Sindical – O que o Sr. tem a considerar sobre as restrições criadas ao acesso à Justiça gratuita?
Feliciano – Para mim, correspondem talvez a uma das porções mais inconstitucionais da Lei 13.467/17. Tanto é que isso foi arguido, já há alguns meses, pelo ex-Procurador Geral da República. Veja, eu tenho dado sempre este exemplo. Antes da reforma, se um trabalhador ingressasse com uma ação reclamatória com dez pedidos - sendo os 9 primeiros de verbas rescisórias (horas extras, multas etc.), totalizando, vamos imaginar, R$ 15 mil, e ele formulasse um último pedido de indenização, de R$ 100 mil, por danos morais e materiais porque ficou surdo dos dois ouvidos, achando que é por causa do ruído da empresa, o que aconteceria? Imagine que se faz a perícia e o médico diz: não, a surdez não decorre do ruído, é uma doença degenerativa, genética, ou seja, não há responsabilidade da empresa. Então, ele ganha, nos primeiros 9 pedidos R$ 15 mil e perde nesse último pedido, em que ele reclamava R$ 100 mil.
Em resumo: antes da reforma, ele recebe seus R$ 15 mil integrais, como é seu direito. Com relação aos R$ 100 mil, ele os perde, mas como não havia sucumbência recíproca, quem paga as custas é a empresa, que perdeu nos outros 9 pedidos. Quanto aos honorários do perito, que em São Paulo, até onde eu judico, ficam por volta de R$ 5 mil, eram pagos pela União. A justiça do Trabalho tem uma rubrica em seu orçamento para pagar esses honorários, que dentro de um tabelamento não chegam a R$ 5 mil, mas há lá uma satisfação para o perito.
Era assim até o dia 10 de novembro. A partir de 11 de novembro, tudo muda, porque, de fato, a reforma traz essa excrescência. A Constituição diz que a assistência judiciária gratuita será integral. Essa é a expressão. A reforma vem e diz: não, mesmo se houver a gratuidade judiciária, o trabalhador tem que pagar certas despesas com os créditos que tenha. Então, não é gratuita. E aí, o que acontece após 11 de novembro ao trabalhador no exemplo dado?  OK. Liberou 9 pedidos, ganhou R$ 15 mil; mas perdeu o último pedido de R$ 100 mil. Mesmo sendo pobre, o juiz o declara pobre, ele tem que pagar, se tiver créditos, os honorários do advogado da parte contrária. Ora, pela nova lei, esses honorários podem ser fixados em até 15% ou R$ 15 mil. Se o juiz fixar em 15%, já zerou. O trabalhador ganhou R$ 15 mil e pagou R$ 15 mil para o advogado da empresa. E pior: ainda tem os R$ 5 mil dos honorários do perito, que ele também terá de pagar se tiver créditos. Aí imagina o seguinte: ele tem uma outra ação trabalhista, contra uma outra empresa, que ele já ganhou e o dinheiro já está depositado. Ele vai ter que pagar com esse outro dinheiro, que nem era da ação. Então, veja que situação distorcida. Ele ingressou com uma ação reclamatória trabalhista, ganhou 90% da ação – de dez pedidos ganhou 9 – e, no entanto, sai sem nenhum tostão e ainda sai devendo. Vai ter que pagar o perito com crédito de outro processo. Isso é absolutamente distorcido. Isso é um obstáculo econômico claro para o acesso à Justiça, especialmente do mais pobre. E, a nosso ver, é inconstitucional. Ninguém tem absoluta certeza de que vai ganhar um processo.

‘Nova regra processual só atinge processos novos’

Mundo Sindical - Como ficam os processos trabalhistas anteriores a 11 de novembro? Feliciano – É questão polêmica. Têm havido decisões nos dois sentidos. Nos primeiros dias da reforma, na Bahia, houve uma decisão em Ilhéus dizendo que as novas regras processuais se aplicam de imediato e uma decisão em Salvador dizendo que não se aplicam. Minha opinião é a que também resultou da 2ª Jornada Nacional do Direito Material e Processual do Trabalho realizada pela Anamatra, em Brasília, nos dias 9 e 10 de outubro, com o Ministério Público do Trabalho, com os auditores fiscais do trabalho e com a advocacia trabalhista, mais os juízes do trabalho. Essa questão esteve entre os vários temas debatidos. E do debate resultou um enunciado, com o qual eu concordo, dizendo que as novas regras processuaisque criam ônus econômico e criam obrigações para as partes – trabalhador e empresário – somente se aplicam a processos novos.
 Porque o trabalhador, lá atrás, quando ingressou com a ação reclamatória, ele não tinha nenhuma perspectiva de, em vencendo, ver a empresa pagar os honorários do seu advogado, assim como ele também não tinha nenhuma perspectiva de, em perdendo, ter de pagar os honorários dos advogados da empresa. Isso não existia. Então, imaginar que se possa aplicar de imediato estas regras, que geram obrigações relativas a uma situação anterior - porque os advogados foram contratados antes de tudo isso -, significa fazer retroagir a lei a uma causa anterior. E a regra no Brasil é a irretroatividade da lei. É claro que aquelas regras processuais que não interferem nas obrigações materiais, como, por exemplo, a contagem de prazo em dias úteis, se aplicam de imediato. Mas esse tipo de regra que gera um encargo que não existia, uma obrigação que não existia para uma parte ou outra, a meu ver não deve ser aplicada aos processos em curso. É o meu entendimento. E eu imagino que esse entendimento vai acabar prevalecendo no Tribunal Superior do Trabalho.

‘É prematuro falar em redução da litigiosidade’

Mundo Sindical - Na primeira semana após o 11/11, dados de cinco tribunais regionais – RS, BA, PB, DF/ TO e PE – apontam queda de cerca de 60% no número de processos ajuizados em relação à média do 1º semestre. Isso tem consistência? Ou o trabalhador está em compasso de espera?
Feliciano – Também é uma excelente questão. Primeiro, ainda não tem como dizer qual é a média do semestre, porque o semestre não acabou. Então, eu tenho receio dessas comparações. O próprio jornal “O Estado de S.Paulo” diz que houve essa queda e deixou nas entrelinhas a compreensão de que, de fato, a reforma estava atingindo seu objetivo que era de diminuir a litigiosidade. O certo é fazer uma análise dos números pregressos. E a Anamatra fez isso. Veja (os números) no Estado do Rio de Janeiro, TRT da Primeira Região: no dia 8/11, antes da entrada em vigor da reforma, foram distribuídas 3.557 ações novas; no dia 9/11, 5.169 ações novas; no dia 10/11, as ações duplicaram, muito acima da média, atingindo 10.740 ações novas; no dia 11/11, quando entrou em vigor a reforma, 212 ações novas. Em São Paulo, TRT da Segunda Região – no dia 9/11, houve 5.424 ações novas; no dia 10/11, quase o triplo, 12.626 ações novas; no dia 11/11 não houve distribuição devido à manutenção do sistema; no dia 13/11 (segunda-feira), houve um número inferior dessas ações.
Então, o que aconteceu na verdade? Não foi uma redução de litigiosidade. Foi uma antecipação com a litigiosidade. Os escritórios de advocacia que tinham lá os casos a judicializar, buscaram “desovar” tudo antes da entrada em vigor. Judicializaram em massa porque tinham receio, em primeiro lugar, dos efeitos negativos dessa lei, especialmente com relação ao trabalhador mais pobre – questão que acabamos de discutir; em segundo lugar, havia essas dúvidas de interpretação de constitucionalidade dessa lei na Justiça. Então, o que houve na verdade? Uma antecipação dos ajuizamentos. E aí funciona como nas marés. Quando baixa a onda, o volume de água cai. Como judicializaram tudo, é claro que nas semanas seguintes a distribuição é muito menor. Mas não dá para falar que isso é uma tendência. Nós somente vamos saber se, de fato, houve queda, ou estabilização, ou até aumento, como nós imaginamos, no número de ações lá em 2019, olhando 2018.
Parece-me haver muitas avaliações prematuras nisso. E, além desse fato da antecipação das judicializações, há outros dois fatores. Um refere-se aos muitos escritórios que estão esperando para verificar em que sentido vai caminhar a jurisprudência; estão aguardando, estrategicamente observando, qual vai ser o sentido das decisões para então pensar como melhor propor as ações; há este compasso de espera também. Por fim, o que é pior, e que nós já discutimos, há de fato esse obstáculo econômico, especialmente para os mais pobres, pelo temor de terem que pagar, inclusive, quando forem reclamar os seus direitos. Isso é muito ruim. Se eu tenho uma tendência de fuga à judicialização por medo de fatos econômicos que foram criados para o acesso à Justiça, ainda que não sejam obstáculos imediatos, mas que vêm depois, eu tenho uma questão séria de ameaça à garantia de ter uma ação por justiça. E aí é que se tem que discutir a constitucionalidade dessas previsões, especialmente para os mais pobres.

Mundo Sindical - Três ações diretas de inconstitucionalidade já deram entrada no STF contra a reforma. Será uma tendência? E há até um parecer elaborado pela Consultoria Jurídica Zilmara Alencar, de Brasília, considerando inconstitucional a MP 808, a dos “remendos”...  
Feliciano  Na verdade, no STF, já há até mais ações. Somente da Procuradoria Geral da República, há ações na questão da gratuidade da Justiça e também na questão da terceirização de atividade principal. Há mais várias ADIs apresentadas por confederações etc., discutindo a questão do trabalho intermitente e a própria supressão da contribuição sindical obrigatória. Outros casos, imagino, vão chegar ao STF, fora a discussão que haverá no controle difuso, pelos juízes, com os dados concretos. Acho também que a MP 808 tem problemas. Embora ela tenha melhorado alguns aspectos, não resolveu a maior parte das questões. De fato, a tendência agora é que vários aspectos sejam discutidos na sua constitucionalidade. E vários deles nós indicávamos ao Parlamento durante a tramitação da reforma. Poderiam ter pensado melhor. Poderiam ter discutido melhor com a sociedade civil organizada e produzido uma lei mais técnica. Não o fizeram. A Medida Provisória era outra oportunidade de solucionar algumas inconstitucionalidades. Em alguns aspectos, até houve melhorias, mas a maior parte delas continua aí. Vai haver ainda muita discussão a respeito.

Mundo Sindical - Aliás, essa MP dos Remendos, que começou a tramitar no Congresso, recebeu 967 emendas... 
Feliciano - Foi um recorde de emendas propostas. Falava-se tanto em segurança jurídica. Parece que não é isso que estamos vendo.

‘Pode-se pagar menos que um salário ao intermitente?’ 

Mundo Sindical - Também estão pipocando contestações, por exemplo, ao contrato de trabalho intermitente, em especial em relação ao seguro-desemprego e à contribuição previdenciária para este tipo de contratação... 
Feliciano – Já há uma discussão séria sobre se, realmente, no trabalho intermitente, o trabalhador poderá receber menos que um salário mínimo mensal. O que está garantido lá é o salário mínimo hora. O próprio ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado, em recente obra que publicou sobre a reforma, ele aponta esta possível inconstitucionalidade. Com relação ao seguro-desemprego, essa é a questão. O que a MP 808 acaba inserindo é que, para o trabalhador ter acesso à proteção previdenciária, ele tem de recolher sobre o salário mínimo integral no mês. Do contrário, não será considerado vinculado, aquele tempo não contará para nenhum efeito para suas carências previdenciárias. Isso é muito ruim, porque o que a MP está fazendo é colocar ao desalento, sem proteção previdenciária, toda esta gama imensa de trabalhadores que se dizia estão na informalidade, e agora serão formalizados. Porque sabemos que, na maioria dos casos, os trabalhadores intermitentes não vão receber o salário mínimo mensal. E muito provavelmente não vão recolher a diferença.
Por outro lado – e aí me parece que de fato há uma inconstitucionalidade -, não há nenhuma justificativa, do ponto de vista constitucional, para que o trabalhador intermitente não receba o seguro-desemprego. Não há nenhuma restrição nesse sentido na Constituição Federal. Pelo contrário, o seguro-desemprego é um direito fundamental de todos os trabalhadores urbanos e rurais. É o que está ali. É claro que, em 1988 (quando foi promulgada a atual Constituição), não se imaginava essa figura de trabalhador intermitente. Mas, se criaram e isso é constitucional, que pelo menos todos os direitos que estão no Artigo 7 lhe sejam garantidos. Ele não pode ser discriminado. Então, me parece absolutamente inaceitável, e a meu ver fere a Constituição, esse preceito que procura recusar ao trabalhador intermitente o direito ao seguro-desempro.

‘É momento de incerteza para empregador e trabalhador’

Mundo Sindical – Que mensagem deixa aos trabalhadores e empregadores neste momento?  
Feliciano – É um momento de incerteza tanto para os empregadores como para os trabalhadores, o que demonstra que quando se falava de segurança jurídica era uma falácia. Para os trabalhadores, há dois caminhos principais. O primeiro, inclusive, é também o caminho que tenho indicado aos empregadores. O ideal neste momento seria tentar preservar, por meio da negociação coletiva, todos os direitos e garantias que já são próprios da categoria. Acho que é o melhor caminho.
Os sindicatos precisam ter agora um especial cuidado, fazer um particular esforço e tentar reproduzir os acordos e convenções coletivas de trabalho com todas as garantias e direitos que havia nas anteriores. E, se possível, incorporando aqueles direitos legais que existiam e que agora, de alguma forma, a reforma trabalhista acabou restringindo, enfraquecendo ou até eliminando. Por exemplo, a previsão de que antes de quaisquer demissões em massa, demissões coletivas, haverá prévia negociação com o sindicato. Isso não tem custo nenhum para a empresa e pode ser perfeitamente incluído nos acordos e convenções coletivas do trabalho. E aí me parece que não haverá discussão alguma. Ah!, mas a lei diz que não precisa. Bom, mas o acordo e a convenção dizem que precisa. O espírito não é o do negociado sobre o legislado? Então, que prevaleça o negociado.
Acho que todos os juízes do trabalho entenderão que, evidentemente, essa negociação prevalecerá sobre a lei, até porque é mais benéfica. Então, o primeiro caminho é esse - concentrar-se, esmerar-se nas negociações para preservar nos próximos acordos e convenções coletivas as condições anteriores, inclusive as legais que eventualmente estejam em xeque, para que sejam incorporadas aos textos convencionais. Para os trabalhadores, em específico, é isso a fazer se acharem que estão sendo lesados nos seus direitos. E buscar a Justiça do Trabalho. A verdade é essa.
A Justiça do Trabalho existe exatamente para dirimir esses conflitos. E aí está a garantia constitucional do trabalhador que se sente lesado mesmo diante da nova lei trabalhista, por entendê-la contrária à Constituição. Este é o momento de levar sua discussão ao Poder Judiciário. É claro que nós também temos o Ministério Público do Trabalho, que certamente terá um papel decisivo, especialmente no que diz relação às ações civis públicas. Os próprios sindicatos podem se valer das ações civis públicas para questionar determinados pontos da reforma no que diz respeito aos efeitos concretos para a categoria - é se utilizar dos instrumentos que a ordem jurídica dispõe. O Judiciário vai fazer agora o seu papel. Irá interpretar essa lei. Irá aplicá-la onde for constitucional. Irá afastá-la onde não for constitucional. Agora, a sociedade civil precisa compreender que haverá esse tempo até que tudo isto, digamos, se assente e nós tenhamos um horizonte mais claro. A lei é ruim, a lei é atécnica, a lei tem lacunas, tem contradições internas e o Judiciário terá que fazer seu trabalho para corrigir e adequar tudo isso.
Fonte: Redação Mundo Sindical - 29/11/2017
 

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